João Weber Griebeler
Potí era um índio guarani que vivia próximo à recém implantada redução jesuítica de Assunção do Ijuí. Tendo aceito a catequização dos padres missionários, seus tempos de vidas nômade e errante tinha sido trocados pelo conforto e segurança que a palavra do nandejara Jesus Cristo oferecia para seguidores.Os alvores deste amanhecer começam a desfazer a neblina e as brumas da noite. As águas do Rio Ijuí surgem límpidas a sua vista. O dia primaveril de 1628 surge então como todo o seu esplendor. Apicaçu voa e canta por sobre cáagaçu.
Nesta manhã, Potí está pensativo, a contemplar o verde das matas e os campos, aqui e acolá cultivados por seus irmãos de tribo.
Sua noitada de sono e repouso havia sido péssima, sendo causadora disso a longa conversa mantida com o cacique Nheçu, que desenrolava ao pé da fogueira até altas horas da noite. Nheçu cruzara o rio num igaratim e vieram cheio de planos e idéias, dispostos a usar de todos os argumentos para persuadir o índio que estava aceitando a doutrina cristã. Nem o canto do urutau atrapalhara, embora Potí tivesse ficado meio receoso com esse mau presságio.
Suas reminiscências ancestrais haviam sido despertadas pelas espertas palavras do cacique. Potí recordara então que o tempo de frio tinha trocado de lugar com o tempo de calor por muitas vezes desde que ele fora considerado um guerreiro valente e valoroso para a tribo. O som da inúbia não mais acariciara seus ouvidos deste aquela época e ele vivera somente para a tristeza desde então. Como ele pudera se esquecer disso?
Novamente as palavras de Nheçu retomar a sua memória e ficam ali ressonando, cadentes por demais perturbadoras.
“Onde estão as nossas tradições? A nossa gloriosa liberdade? Desde que vieram os abunas e criaram os abambae perdemos tudo. Para os guaranis, eles são mais perigosos que a boicininga. Ontem tínhamos as caçadas, comíamos a carne da capivara e do tatu. Hoje, nem temos mais o abati para saciar nossa fome. Quando nossa cunha-caraí está velha demais, já não podemos mais ter a pele macia das cunhataí para nos aquecer no inverno. Que índios ainda somos? Pois eu te digo, Potí, que estou voltando de uma conjura com os caroguaras e o destino dos abunas já está traçado!”.
Potí mergulhou em angústia profunda com reflexões. Se o causador de tantos males que estão afligindo seus irmãos de tribo é mesmo o homem branco das rezas, porque então não exterminá-lo de vez, como sugerira Nheçu em sua despedida? O abuna daquela redução é um homem só e ele, Potí, sempre fora um guerreiro acostumado com a luta e a enfrentar qualquer inimigo de peito aberto.
O choro de seu colomi soa no interior da oca. Faz dois dias que ele está dente. Não adiantara nem um pouco a vinda de Nheçu, tão famoso em curar doenças só com seu olhar poderoso. Anhá não cedera seu espaço e o estado de saúde da criança estava piorando a cada momento que passava.
Potí vivência então um drama interior, entre suas crenças reavivadas por Nheçu e por sua nova fé cristã. De um lado, sabe que sua cunha-caraí não poderá lhe pari outro colomi, também sabe que para ir ao íbaga, quando morrer, não poderá ter duas mulheres. Isso lhe explicara muito bem aquele abuna João de Castilho, pois talvez seu tupã seja mais forte que as caretas de Nheçu. A salvação de sua raça é o que mais lhe importava nesta hora. O abuna que ele pensara em matar há poucos instantes talvez venha a salvar seu colomi!.
A noite é longa. Depois do urutau, é o mbopí que sobrevoa a oca de Potí. Quando cuarahi surge no horizonte, sua cunha-caraí volta para casa com o colomi já aliviado de seus males. Tupã fora misericordioso.
Quando chega na porta da oca, ela vê confirmado todos os negros presságios, pois Potí faz no solo, prostrado, morto que fora pelo golpe dado com o igaçaba. Nheçu não perdoara a hesitação do índio. Suas pregações que cabariam por levar ao martírio aos abunas Roque Gonzales, Afonso Rodrigues e João de Castilho, não podiam ficar abrigadas em corações devotos `a fé no tupã dops brancos e por isso ordenara a execução de Potí.
GLOSSÁRIO
- abati, milho
- abambae, bem coletivo da comunidade, coisa pública.
- abuna, padres, jesuítas.
- anhá, demônio.
- Apicaçu, pomba.
- Boicininga, cascavel.
- cáaguaçu, floresta.
- caroguaras, habitantes da Redução jesuítica de Cáaró
- colomi, menino.
- cuarahi, sol
- cunhataí, moça, virgem .
- cunha-caraí, esposa.
- íbaga, céu.
- igaçaba, vaso, pote d’água
- igaratim, barco de tamanho médio, de uso dos caciques.
- inúbia, flauta, trombeta de guerra.
- mbopí, morcego.
- nandejara, nosso senhor.
- sapucaí, gritos.
- oca, choça.
- uratau, pássaro noturno, de pio lúgubre e pressago.
- tupã, deus.
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